Abri este vídeo aqui e me deparei com mais um argumento nada a ver de um protestante desinformado, dessa vez sobre a Bíblia:
Então a Bíblia é mais antiga que a Igreja? Interessante seu pensamento, mas totalmente errado, e eu posso provar.
Comecemos pelo primeiro argumento do sujeito: Moisés começou a escrever o Antigo Testamento a alguns milhares de anos antes de Cristo (o que está correto, historicamente foi há cerca de 1400 a 1600 anos antes de Cristo), porém isso não é a Bíblia, e sim a Torá, ou Pentateuco. Bíblia vem de “τὰ βιβλία”, “tà bíblia” (em uma transliteração), expressão em grego koiné para “os livros”, ao se referir aos livros sagrados do cristianismo, e a maioria dos tais livros não existiam na época de Moisés, ou seja, a Bíblia não é daquela época. Inclusive os próprios escritos judeus não são chamados de “Bíblia” num sentido genérico, mas sim de Tanakh, ou Tanach, união das bibliotecas da Torá, Navi'im e Ketuvim (Ensinamento, Profetas e Escritos), e os cânones de nenhuma dessas bibliotecas estava totalmente definido de forma pétrea até o século II d. C., tanto que alguns grupos, como os etíopes, rejeitavam até mesmo trechos da Torá, enquanto os saduceus aceitam apenas a Torá, e os fariseus num geral não aceitavam nada escrito fora do território da Judeia, os judeus gregos aceitavam textos além dos que estão hoje no cânone do Tanakh, como Macabeus I, II, III ou IV (dependendo do grupo), trechos do livro de Esther e até o Salmo 151, e inclusive discordavam em quais dos livros das septuagintas eram sagrados ou não. Então qual era a Bíblia que existia antes da Igreja? A Almeida Corrigida Fiel? Não me parece ter nenhum códice centralizado como temos hoje...
A Torá em si também não era consenso entre os judeus, já que alguns grupos supostamente usavam até mesmo versões destoantes da Torá, como os judeus etíopes. Comparar um cânone unificado com um conjunto de livros distintos que não havia sequer consenso no período é um pouco estranho se analisarmos por este ângulo.
Além disso, qual cânone você considera “a Bíblia Sagrada”? O cânone que usamos hoje é o cânone definido na Sacra Vulgata de São Jerônimo (primeira tradução oficial da Bíblia para o latim), e, sim, existem cânones anteriores a esse, inclusive com mais ou menos livros (como o “Pastor de Hermas”, a “Didaquê” ou a “Epístola de Barnabé”), mas não são o mesmo cânone que usamos hoje, nem do Novo Testamento, nem do Antigo Testamento (inclusive algumas igrejas ortodoxas até hoje discordam do cânone, aqui tem alguns exemplos). Ou, no caso dos protestantes, o cânone utilizado mistura o cânone da Sacra Vulgata com o cânone do Tanakh, e só surgiu de fato no século XVI. “Mas São Jerônimo colocou o deuterocânone em uma seção separada da Bíblia”, sim, mas manteve ele lá, e o deuterocânone é tão importante que nem Lutero o removeu de sua tradução, colocando-o também em uma seção separada de sua tradução da Bíblia. Como eu disse, o cânone protestante é uma criação moderna.
É importante considerar que a formação e a consolidação do cânone bíblico foi um processo complexo que ocorreu em um intervalo da vários séculos, e onde os livros foram questionados inúmeras vezes, tanto sobre sua autenticidade quanto sobre sua inspiração divina. Portanto, a própria ideia de “Bíblia” como um conjunto fixo e imutável de livros é um conceito moderno, inclusive porque alguns textos sagrados foram considerados inspirados em determinados períodos e descartados posteriormente, enquanto outros livros tiveram sua inspiração questionada no princípio, mas foram aceitos posteriormente. Um cânone consolidado, sólido e imutável só veio a surgir através das mãos da Igreja Católica através da criação da Vulgata no século IV (para os cristãos) e da consolidação do Tanakh no concílio de Jamnia no século II (para os judeus).
O segundo argumento, de Isaías ter profetizado Jesus, não significa absolutamente nada, os reis magos profetizaram Ele também (falando sobre o nascimento do novo rei, e até mesmo descobrindo o local aproximado do nascimento antes mesmo da Sagrada Família estar em Belém, gastando semanas ainda visitando Jerusalém para conversar com Herodes sobre o tema) e nem por isso escreveram livros da Bíblia, e outros textos, como o pseudoepígrafo de Nicodemos, também falam sobre Jesus e nem por isso estão na Bíblia ou fazem parte dela. Da mesma forma, os gregos pregavam sobre o “deus sem nome” que Paulo identificou e lhes provou que era YHWH, por acaso terem pregado sobre ele torna qualquer um dos escritos dos gregos helênicos minimamente inspirado por simplesmente sugerir o deus cristão? Os textos sagrados não são sagrados só por falarem de Jesus ou de YHWH (até o Código da Vinci, de Dan Brown, seria sagrado por esse critério, bem como os evangelhos gnósticos e o pseudoepígrafo de Pilatos), nem se validam através de argumento circular, mas sim são sagrados porque o clero de cada religião definiu assim, formando uma biblioteca cada (que é um significado para a palavra Bíblia), e, da mesma forma que os judeus definiram que os textos são sagrados em concílio, os católicos e os ortodoxos definiram através dos líderes de suas religiões (Papas e Patriarcas) e através de concílios ecumênicos (como Trento).
Por fim, goza de grande desonestidade intelectual quem acusa um sujeito de heresia e de “ser um imbecil” por simplesmente considerar “a Bíblia Sagrada” como a conhecemos como surgida no século IV com o cânone da Sacra Vulgata de São Jerônimo e não como surgida na escrita da primeira palavra da Torá, e não, falar que a Igreja não é mais nova que a Bíblia não é heresia, e sim um fato histórico, a menos que você considere um monte de textos soltos sem correlação clara entre si como sendo “a Bíblia”. Não existe nada em lugar algum que reitere isso, tanto que as igrejas dos apóstolos são mencionadas também na Bíblia. Se discorda de mim, tem três coisas que você pode me responder. Primeiramente, por que o Pastor de Hermas foi retirado da Bíblia enquanto o Apocalipse de João foi adicionado? Em segundo lugar, por que motivo se usa o cânone de Jamnia para o Antigo Testamento se a tradução dos setenta (Septuaginta) era a utilizada pelos apóstolos, e a mesma tinha vários deuterocanônicos, alguns até que nem sequer estão na Bíblia Católica? Em terceiro lugar, por que na Bíblia os apóstolos são mostrados pregando de mãos nuas e falando para guardarem a palavra entregue oralmente também?
Novamente, não foi possível encontrarmos as tais “refutações ao catolicismo” que procurávamos, portanto, voltaremos a procurá-las em outros lugares, dadas as devidas considerações acima. Oremos pelo irmão em erro, mas não apoiemos seu erro, e sim expliquemos para tal onde está seu engodo, para que seja possível corrigí-lo, direcionando-o em busca da verdade.
A paz de Cristo.
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