Para quem está com pressa demais pra ler até o fim, já vou dar spoiler: não, não são. Se quer uma prova concreta, encha uma seringa de Coca-Cola e injete na veia, você vai se contorcer de dor enquanto seu sistema circulatório é destruído pelo líquido estranho e não vai sofrer nenhum efeito benéfico do mesmo. Além disso, ao contrário do processo digestivo, onde o sangue seria, de fato, consumido, no processo de transfusão o sangue persiste cumprindo sua função, que é a de levar oxigênio às células.
Mas então como são justificadas as passagens em Gênesis 9:4-5, Levítico 17:14 e Atos 15:20? Em primeiro lugar, esses versículos não falam sobre transfusão de sangue, e sim sobre o consumo do sangue do animal em uma dieta alimentar, ou seja, beber ou comer sangue ou derivados. Em segundo lugar, essas passagens não dizem respeito aos cristãos, e sim aos judeus, e o próprio apóstolo Paulo deixa claro que boa parte da lei não é mais necessário cumprir, já que não é mais por isso que o homem será justificado (Gálatas 2:15-16). Da mesma forma, o que mancha o homem não é o que entra em sua boca, mas o que sai dela, como o próprio Jesus nos diz (Mateus 15:11,15-18,20), então nem o “comer o sangue” mais é totalmente proibido.
Da mesma forma, mesmo que fosse isso que a lei pregasse, a lei judaica não possui mais o mesmo peso que tinha para os judeus para nós cristãos, sendo que nós estamos submetidos à Nova Aliança e à nova lei, e não aos antigos dogmas farisaicos, e a patrística, escrita pelos pais da igreja primitiva comprovam isso. Veja este trecho de Justino Mártir ao dialogar com Trifão (Diálogo com Trifão, CXXII:5):
De modo nenhum! Se a lei fosse capaz de iluminar as nações e aqueles que a possuem, para que seria necessária uma nova aliança? Contudo, já que Deus anunciou que enviaria uma nova aliança, uma lei e um mandamento eterno, não devemos entender a antiga lei e seus prosélitos, mas Cristo e os seus, a nós, os gentios, a quem ele iluminou, como diz em algum lugar da Escritura (Isaías 49:8): “No tempo propício eu te ouvi e no dia da salvação eu te ajudei. Eu te estabeleci como aliança das nações para restabelecer a terra e herdar os desertos como herança”
Da mesma forma, Paulo nos adverte (Gálatas 4:21-31, Romanos 10:4) que somos filhos da promessa, e não da lei, e não estamos escravizados por ela como os que seguem a antiga aliança. Da mesma forma, Cristo de nada serve a um legalista (Gálatas 5:1-4), que busca a justificação pela lei mosaica e não pela nova aliança, e até o apóstolo Pedro foi repreendido por agir como um judaizante em dado momento da Bíblia (Gálatas 2:11-21). Mas pior que buscar a justificação pela lei, apenas pregar uma doutrina diferente da existente, pois este será anátema, maldito por natureza (Gálatas 1:8-11). Mais do que isso, buscam justificação em uma lei inexistente que não se aplica aos gentios (Salmos 147:19-20, Romanos 6:14, Gálatas 3:23-29), mas sim apenas ao povo hebreu (Êxodo 19:3-6, Gálatas 3:23-29). A falta de capacidade interpretativa de um leigo permite que acuse até mesmo Moisés como transgressor, caso o deseje, como mostra Justino Mártir (Diálogo com Trifão, CXII:1-3, 5):
Vós, porém, ao explicar essas coisas de maneira tão pobre, tendes que acusar Deus de muita fraqueza, se as ouvis simplesmente e não penetrais a força do que se diz. Se assim fosse, poder-se-ia condenar ao próprio Moisés como transgressor da lei, pois ele que ordenara não se fizesse imagem nenhuma do que há no céu, na terra ou no mar, em seguida ele mesmo mandou fazer a serpente de bronze e, colocando-a numa cruz, mandou que os picados olhassem para ela, e os que olhavam ficavam curados. Dever-se-ia então entender que foi a serpente que salvou o povo, ela que, como eu já disse, foi amaldiçoada por Deus no princípio e à qual matará com sua grande espada, como diz Isaías? Será que devemos entender essas passagens da maneira tão insensata como as explicam vossos mestres e não como símbolos? Não referiremos o sinal à imagem de Jesus crucificado, pois que também Moisés com seus braços estendidos e o nome de Jesus dado ao filho de Nave faziam com que vosso povo vencesse?
Portanto, se não abandonardes os ensinamentos dos que se exaltam a si mesmos e gostam de ser chamados: “Rabi! Rabi!”; se não vos aproximardes das palavras proféticas com a decisão de estardes dispostos a sofrer por parte de vossos homens o mesmo que os profetas sofreram, com certeza não tirareis nenhum proveito de seus escritos.
Portanto, a observância da lei judaica por todos os cristãos . Alguns podem ainda citar Atos 16:1-3 para dizerem que os cristãos primitivos observavam a lei na íntegra, em uma última tentativa de justificar suas crenças judaizantes, porém esquecem que o próprio Paulo, ao fazer essa circuncisão, a fez apenas para evitar escandalizar os judaizantes (2 Coríntios 6:3), pois sabia que a circuncisão física não valia mais de nada (Gálatas 5:6).
Além disso, nota-se uma hipocrisia da Torre de Vigia ao proibir de forma pétrea a transfusão de sangue, mas permitir a doação de órgãos, desde que sem o sangue. Mas ops, eles já proibiram, em 1967 os transplantes de órgãos já foram proibidos, e, se você precisasse se submeter a um transplante de rim ou de coração, você deveria simplesmente aceitar a morte, e em 1980 eles abandonaram essa visão (A Sentinela 15/11/67, p. 702‑704; Despertai! 08/06/68, p. 21; e A Sentinela 15/03/80, p.31, edições norte‑americanas). Entre 1931 e 1952 eles também proibiram vacinação, alegando ser “uma violação na aliança eterna estabelecida por Deus” (The Golden Age, 04/ 02/31, p.293).
“Ok, mas eu ainda não estou convencido, e é preferível morrer a descumprir a lei mosaica”, muito bem, amigo, mas Jesus, em Marcos 2:25-26, deixou bem claro que deve ser feito de tudo para salvar uma vida, você prefere acreditar em Jesus ou na Torre de Vigia? Mais do que isso, você prefere salvar uma vida ou persistir no mesmo legalismo condenado pelos apóstolos? Ao doar sangue, você imita Cristo e doa parte de sua vida para salvar o próximo, não tem nada de moralmente ou teologicamente errado nisso, como já pudemos ver antes.
Curiosamente, a falta de compreensão acerca da natureza do sangue por parte dos Testemunhas de Jeová também é referenciada por Osamu Muramoto, mostrando não apenas que a diferenciação entre os componentes sanguíneos que é feita pela Torre de Vigia não faz sentido como também que é uma postura incongruente com o próprio posicionamento da seita, onde componentes do sangue que correspondem a menos de 0.5% são condenados, mas componentes que podem ocupar de 3% a 5% do volume total do sangue não. Tem também esse folhetim de ex-TJs, mas preferi não citar como referência porque os links para as referências do texto não estão disponíveis.
Geralmente também acusam as entidades externas de obrigarem os Testemunhas de Jeová a aceitar práticas que vão contra a religião dos mesmos, incluindo a doação de sangue. Pois bem, um dos poucos casos judicialmente permitidos para a eutanásia (porque omissão ou cessamento de tratamento também é eutanásia) é a não-transfusão de sangue, inclusive com o STF decidindo que é válida a recusa. Imagine um país onde você precisa de uma decisão judicial para impedir um recém nascido de crescer sem mãe. Sim, meus caros, esse é o país supostamente anti-TJ que falam por aí.
A razão dessa proibição não tem nada a ver com a Bíblia, na verdade, e sim com a obediência cega à Torre de Vigia, com proibições arbitrárias que não tem nada a ver com a Bíblia, e sim com a própria percepção equivocada sobre fé e com a lealdade inquestionável à líderes que nem sequer possuem respaldo bíblico ou histórico, ou embasamento na tradição ou fé apostólica.
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