Os motivos pelo qual a Tradução do Novo Mundo (TNM) é péssima são vários, eu sei, e não são apenas os contidos nessa lista também, porém o presente artigo não possui como foco ser um dossiê completo sobre a Tradução do Novo Mundo, mas sim uma rápida introdução aos erros
Fidelidade
A TNM diz se esforçar para manter a fidelidade das escrituras, mas, ao mesmo tempo em que diz isso, substitui termos como Elohim e Adonai por Jeová (e Jeová nem é o nome mais fiel ao nome de Deus em hebraico, mas sim uma palavra artificial, criada pela junção do tetragrama YHWH com a palavra Adonai), com o motivo de “reestabelecer o uso do nome divino” (coisa que até os judeus evitam para não pronunciar seu nome em vão ou o desrespeitar).
Além disso, há trechos onde a tradução foi completamente deturpada. Veja, por exemplo, em Lucas 23:43:
Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso”.
Enquanto isso, na Tradução do Novo Mundo, é usada uma tradução bem “específica” com o claro objetivo de
E ele lhe disse: “Em verdade, eu lhe digo hoje: Você estará comigo no Paraíso.”
“Mas a tradução é válida porque no grego koiné não existem pontos ou vírgulas nesse trecho”, não, não é, porque não faz sentido Cristo, que toda hora diz “em verdade te digo”, mudar do nada para “em verdade te digo hoje”. Além disso, o próprio sentido da frase fica confuso: como assim “te digo hoje”? Vai dizer amanhã ou ontem? Se trataria de uma proposição redundante, e sem sentido claro em si mesma, o exato oposto do modo que Cristo costumava pregar (onde sempre tentava ser o mais claro possível).
Agora observe este outro trecho em Filipenses 2:8:
E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz.
Porém, na Tradução do Novo Mundo, é usada a palavra “estaca”:
Mais do que isso, quando veio como homem, ele se humilhou e se tornou obediente a ponto de enfrentar a morte, sim, morte numa estaca.
Como eu já disse anteriormente, a palavra “estaca” e a expressão “madeira de suplício” são historicamente e biblicamente erradas, não pela cruz não ser uma madeira de suplício, mas sim pela tentativa de transformar a cruz em um poste apenas para fugir da “idolatria romana”. Qual é a fidelidade disso? Nenhuma.
Mesmo assim, se você apontar algum desses erros para esses sujeitos, eles te mandarão algo parecido com isso:
Pois é, não basta apontar o erro de tradução e o erro teológico, se você não for antitrinitário e não usar apenas a Bíblia na Tradução do Novo Mundo, seu argumento é completamente desconsiderado, em uma clara tentativa de tampar o sol com a peneira.
Literalidade
Os Testemunhas de Jeová se gabam de sua Bíblia ter uma tradução mais literal e desprovida de alterações de sentido. Porém, como mencionado antes, várias expressões tem sua literalidade alterada, onde “cruz” vira “estaca”, “Espírito Santo” vira “a força ativa de Jeová”, e assim por diante. Outras expressões, como “Senhor”, “Deus” e “Mestre” são traduzidas como “Jeová”, o que também mostra que não é uma tradução literal.
Ela também não se qualifica como tradução de sentido, já que o distorce em vários momentos, mudando completamente o sentido de várias expressões (vide tópico “fidelidade”).
Seu uso estrito da regra gramatical para passagens como João 1:1 enquanto simultaneamente distorce Lucas 23:43 para fortalecer a crença herética do sono da alma, e enquanto altera Filipenses 2:8 para tentar, sem sucesso, alterar fatos históricos, consiste em prova cabal de que não apenas a Tradução do Novo Mundo não é uma tradução literal como também de que se trata de uma tradução com objetivo propagandístico.
Também existe o uso de locais onde não é apenas usada uma tradução não-literal, mas deturpada, como em Gênesis 1:2:
A terra era vazia e deserta, e havia escuridão sobre as águas profundas; e a força ativa de Deus movia-se sobre as águas.
Ok, você até pode achar que essa é a tradução mais correta, mas antes teria que dizer o porquê de traduzir πνεῦμα (“pneuma”, espírito) como “força ativa” ao invés de “espírito”, já que não é isso que diz as septuagintas. Se quiser, pode apelar para o hebraico, e explicar como “ורוח”, que, literalmente, significa “espírito”, virou “força ativa”.
Outro trecho que possui uma tradução controversa é Gênesis 1:2, que traduz “לפני יהוה” (“diante de YHWH”) como “em oposição à YHWH”:
Ele se tornou um poderoso caçador em oposição a Jeová. É por isso que se diz: “Como Ninrode, poderoso caçador em oposição a Jeová.”
Em outras palavras, a falta de compromisso com a fidelidade do texto, seja em sentido, seja em literalidade, provavelmente é proposital, e tem como objetivo causar uma compreensão distorcida dos textos bíblicos.
Desprezo pelo deuterocânone
Este não é um motivo tão relevante (já que é via de regra entre os protestantes), mas as Testemunhas de Jeová tem entre seu acervo de argumentos prontos que a Igreja Católica acrescentou livros antibíblicos na Bíblia (o chamado deuterocânone) para justificar suas “heresias anticristãs”, além de dizer que muitos versículos foram adicionados no cânone (motivo pelo qual usam o texto crítico ao invés do textus receptus, mas já vamos chegar lá).
Embora este seja um tópico controverso, alguns fatos são interessantes. Primeiramente, as regras para que um livro pudesse ser considerado inspirado para o cânone do Antigo Testamento são as mesmas que supostamente foram definidas no Concílio de Jamnia, e consistem nas seguintes regras:
- Ser escrito em Hebraico;
- Ser escrito dentro da Palestina;
- Ter sido escrito até a volta do Exílio da Babilônia;
- Estar de acordo com a Torah.
Essas regras te parecem estranhas? Imaginei que seriam, já que até hoje ainda existe a suposição de que estas regras foram criadas especificamente para suprimir os textos gregos, como, por exemplo, os evangelhos (o que é reforçado pelo fato que são regras criadas no século II, enquanto os textos dos evangelhos já circulavam a partir da metade do século I) ou livros proféticos do judaísmo grego e etíope.
Em segundo lugar, outros livros foram adicionados posteriormente (porque antes eram questionados), como Apocalipse, enquanto o Pastor de Hermas, que era tido como canônico por vários expoentes da igreja primitiva, foi removido, mas a Tradução do Novo Mundo tem Apocalipse mas não tem o Pastor de Hermas, e aí?
Em terceiro lugar, os defensores da TNM afirmam que o fato de nenhum escritor no Novo Testamento ou na patrística. A Epístola de Judas faz uma citação a um apócrifo, ele deveria fazer parte do cânone? Se não, por quê? Existem também paralelos e citações do deuterocânone no Novo Testamento, como em I Coríntios 10:9, que faz referência a Baruc 4:7-8.
Em quarto lugar, citar São Jerônimo para dizer que os deuterocanônicos são inválidos não faz sentido, pois o mesmo não é considerado infalível pela Igreja Católica e é considerado um “herege papista” para as Testemunhas de Jeová. O posicionamento dele sobre o deuterocânone, que é embasado pelo Concílio de Jamnia, não é matéria de fé para nenhum dos dois grupos religiosos, sendo, para um deles, importante marco na definição e na tradução do cânone, e, para outro, apenas um fato histórico digno de uma nota de rodapé.
Então, apesar de não ser ser um motivo comumente apontado, o desprezo pelo deuterocânone ao nível que os Testemunhas de Jeová tem beira a irracionalidade.
Acréscimos ou remoções?
A TNM é defendida por “não possuir acréscimos, ao contrário das demais”, sendo uma Bíblia mais enxuta, com menos itens adicionados. Isso se deve, entre muitas coisas, à utilização do chamado “texto crítico” (texto elaborado através da análise de documentos antigos dos séculos III ao V encontrados em diversos países), ao invés do “textus receptus” (texto guardado pela Igreja, datado dos séculos VII a XII). Isso, por si só, não é nenhuma heresia, várias bíblias usam o texto crítico grego, e são ótimas bíblias, como a Bíblia de Jerusalém. O problema é o uso disso como argumento de superioridade.
O texto crítico, como é comumente chamado, é um conjunto de traduções bíblicas baseadas em vários cânones em separado, principalmente nos chamados Texto-tipo Alexandrino, e que tem como objetivo garantir a fidelidade do texto bíblico (já que os exemplares mais antigos do textus receptus existentes hoje são do século VII, enquanto os mais antigos usados no texto crítico são do século II). O problema é que os textos que compõem os cânones desse grupo podem divergir em até 70% em sentido, o que torna muito difícil o estabelecimento de uma versão correta. Além disso, o textus receptus e a Sacra Vulgata (cujos exemplares mais antigos são do século IV) divergem muito pouco, e a Vulgata, escrita no século IV, foi baseada em textos do período, mostrando que há certo grau de fidelidade nos textos.
Além disso, o textus receptus é endossado por mais de 6500 manuscritos diferentes, enquanto o texto crítico é um recorte de outros milhares de manuscritos diferentes. Isso não significa que a versão do texto crítico é inferior, já que ele é uma tentativa de validar a Bíblia historicamente baseada nos manuscritos mais antigos possíveis, e garantir que não houve uma deturpação do texto com ideais políticos ou religiosos, e não uma versão contrária à do textus receptus. No entanto, é muito importante ter em vista essa diferença entre essas duas versões do texto em grego, já que uma das versões é um documento histórico com ampla aceitação entre as mais diferentes sociedades bíblicas e religiosas, e o outro é um estudo arqueológico altamente mutável entre uma versão e outra, o que não apenas mostraa.
Não estou dizendo que, por simplesmente uma Bíblia adotar o texto crítico, ela está errada, porém há uma diferença gritante em usar ela como base e outra tradução como suplemento (que é o caso da Bíblia de Jerusalém) e entre simplesmente descartar o textus receptus, que possui uma discrepância muito pequena entre uma versão e outra, por “ser católica” ou por “ser trinitária”.
Equipe de tradução ou sociedade secreta?
Se você procurar por “equipe de tradução das Testemunhas de Jeová” ou “tradutores da Tradução do Novo Mundo” não vai encontrar muita coisa de relevante. Isso se deve ao fato dos Testemunhas de Jeová terem preferido manter ocultos os nomes dos tradutores. Em “Proceso a la "Biblia" de los Testigos de Jehová”, de Eugenio Danyans (texto disponível aqui), na página 32, é possível encontrarmos a seguinte afirmação (traduzido pelo autor):
Quando o editor Storms tentou obter os nomes dos membros do comitê supostamente qualificados para publicar a Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, começando pelos idiomas originais da Bíblia, não obteve resposta.
“A sociedade – disse Storms – recusou-se categoricamente a revelar a identidade dos membros do comitê de tradução.” Por que? Por acaso tem vergonha?
A citação pode ser clarificada pelas notas de rodapé:
Numa carta em meu poder, a Associação das “Testemunhas de Jeová” informou-me o seguinte: “A Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas não foi produzida com o objetivo de glorificar ou manter a memória dos nomes dos homens. Portanto, os homens que compõem o comitê de tradução indicaram ao Conselho de Administração da Sociedade seu desejo de permanecerem anônimos e, especificamente, não desejam que seus nomes sejam publicados enquanto estiverem vivos ou após sua morte.
Isto, certamente, tem um aspecto de humildade virtuosa, mas a realidade reside em outro motivo, que aparece claramente em muitas outras peculiaridades da seita, e que é: manter a autoridade da organização do bloco através do anonimato, como os reis da Pérsia, que nunca se mostraram capazes de inspirar maior respeito aos seus vassalos. Enquanto a Verdade depende da liberdade e do conhecimento. “Luz e estenógrafos”, como disse Castelar.
Notemos, porém, que o truque não é novo, nem a falsa humildade é exclusiva daqueles tradutores anônimos, pois o apóstolo São Paulo já denunciava no século I alguns sectários que defendiam erros doutrinários muito semelhantes aos dos chamados “Testemunhas de Jeová” dizendo: “Ninguém vos prive da vossa recompensa, fingindo humildade e adoração aos anjos, intrometendo-se naquilo que não viu, em vão inchado pela sua própria mente carnal” (Colossenses 2:19). - (Nota do autor.)
Nota-se uma tentativa de ocultação da verdadeira identidade dos tradutores do grego da Tradução do Novo Mundo que pode ter muito mais a ver com uma tentativa de proteger a imagem dos tradutores de eventuais críticas, além de transferir suas autoridades para a organização sectária “Torre de Vigia”. Mais do que isso, é possível alegar a capacitação de seus tradutores sem nunca demonstrar qualquer prova do feito.
A ocultação dos tradutores, apesar de ser, a primeira vista, negativa para a Torre de Vigia, traz uma grande vantagem em duas situações:
- Caso os tradutores tenham uma má capacitação;
- Caso os tradutores não se baseiem em textos do grego e do hebraico, mas sim em textos em outros idiomas.
Para o primeiro caso, possuímos um exemplo clássico, que é o de João Ferreira de Almeida, que começou sua carreira como tradutor aos 16 anos de idade. Sua tradução sofreu e ainda sofre diversas críticas por sua falta de experiência como tradutor e por alguns erros de sentido tanto no aspecto linguístico quanto no aspecto teológico, como já analisados superficialmente no blog em um artigo anterior. Caso os tradutores não tivessem embasamento técnico ou teológico para realizar a correta tradução dos textos, uma opção muito sábia seria simplesmente ocultar suas identidades, blindando-os deste ataque.
Para o segundo caso, traduções da Vulgata, como a Bíblia Matos Soares, são comumente criticadas por diversos grupos religiosos como sendo uma tradução indireta, por se basear não nos textos originais, mas em uma tradução, acusando-a de estar adulterada, e até mesmo de promover a ausência de divindade na pessoa de Cristo. Ignorando o fato óbvio que, em mais de mil anos de catolicismo antes da reforma protestante, nenhum católico leitor da Bíblia acusou formalmente Cristo de não ser Deus sem receber uma repreensão eclesiástica ou excomunhão, é possível notar que ocultar a identidade dos tradutores remove a possibilidade de identificar usos de textos traduzidos, ou mesmo, caso nenhum dos envolvidos tivesse conhecimento de grego ou hebraico, do texto ser uma releitura, correção ou comentário de algum outro texto já existente (semelhante ao que ocorre hoje com as Bíblias Almeida, corrigidas por diversas editoras e grupos diferentes).
Em ambos os casos, a mera ocultação do nome dos tradutores, que já é suspeita por si só, traz benefícios para os Testemunhas de Jeová.
Conclusão
Embora o processo e o resultado de uma tradução destoante das demais possa gerar um acréscimo positivo ao todo, como é o caso da Bíblia de Jerusalém (pelo esforço em ser uma Bíblia imparcial e atualizada com as descobertas bíblicas mais recentes) ou da Nova Versão Internacional (por uma tentativa de padronizar o texto em vários idiomas), a Tradução do Novo Mundo é, no mínimo, controversa. Atrevo-me a dizer que, dadas as circunstâncias, poderia até mesmo ser utilizada pela Igreja Católica como argumento a favor da necessidade de um Imprimatur para a tradução de novas Bíblias. Seu texto, que serve mais como propaganda do que como material de estudos, não é imparcial nem preciso, e varia entre preciosismo linguístico e a completa paráfrase, dependendo do contexto, para justificar seu próprio entendimento das escrituras, não sendo adequada nem para leigos e nem para eruditos como Bíblia de estudos, e, assim como qualquer texto impuro, deve ser tratado com cautela por seu estudioso.
Comentários
Postar um comentário