Sei que esse tema não é, propriamente, uma heresia, mas é importante compreender um pouco melhor o tema, então vamos lá. Estava eu assistindo o vídeo acima (link aqui), quando olho os comentários e me deparo com isso:
Pois é, galera, é agora que a Igreja Católica termina, que o protestantismo abre suas asinhas e prova por A+B que a Igreja Católica é a cria do diabo e passava veneno nas bordas da Bíblia para acabar com qualquer um que tentasse a ler. Mas será mesmo?
Vamos começar com uma refutação simples e lógica a um ponto bem específico: a proibição da leitura da Bíblia. Ora, se a Bíblia tinha sua leitura proibida e o clero não queria que ninguém lesse, não era muito mais fácil simplesmente não copiar mais bíblias? Afinal, eles quem definiam o que era e o que não era doutrina, era mais fácil eles simplesmente dizerem que tinham autoridade mística, sagrada, divina e que eram uma espécie de avatar de Cristo como os sujeitos que supostamente incorporam espíritos em terreiros de umbanda, e não copiar um conjunto de livros sagrados no idioma mais popular da época. Isso simplesmente não faz sentido, ainda mais se falarmos da suposta proibição da Bíblia ao mesmo tempo em que a liam em um idioma universal.
Mais do que isso, na maioria das comunidades católicas (para não dizer todas) o ensino básico das escrituras (quais os livros, como funciona a divisão entre capítulos e versículos, como achar determinado versículo, os ensinamentos gerais dos evangelhos, os mandamentos, a história geral mostrada na Bíblia, entre outros) e o ensino básico da doutrina católica (sacramentos, dogmas básicos, estrutura da igreja, principais termos, entre outros) é obrigatório, e uma pequena e breve noção da história da Igreja é opcional, porém incentivada. Além disso, qualquer um dos catecismos hoje usados não apenas faz referência à Bíblia, como também a diversos outros documentos papais ao longo da história, e praticamente todos os documentos preservados da Igreja hoje estão disponíveis na íntegra na internet, inclusive os controversos, então qualquer leitor ávido por conhecimento pode ler estes, e dizer “não li porque em minha catequese não me passaram” é apenas uma forma de tentar transferir a culpa por sua própria preguiça e indisciplina.
Sobre a proibição da leitura da Bíblia (recomendo este artigo), o maior problema com as escrituras nas mãos dos leigos era em relação aos cátaros (grupo de cristãos gnósticos que, basicamente, iniciou a Inquisição Católica por matar mulheres grávidas para libertar os filhos da matéria) e aos valdenses (grupo de cristãos que acreditavam em nuda scriptura, negavam qualquer tipo de tradição e ainda pregavam que o Papa era um herege), e, por isso, eram proibidas traduções bíblicas sem a aprovação clerical, também chamada de imprimatur (e, como a maior parte das pessoas letradas eram fluentes em latim, consequentemente, a maioria das bíblias era em latim, mas existiam bíblias em outros idiomas, como os evangelhos de Wessex, os evangelhos de Ottfrid e a Bíblia moralisée), mas, se você tivesse dinheiro o bastante, poderia solicitar a tradução para o idioma de sua preferência, independente do idioma, como a tradução para o idioma glagolítico.
O principal motivo para não termos mais textos em outros idiomas além do latim era, pasme, a inexistência de uma prensa de tipos móveis. Uma única cópia de uma Bíblia poderia custar mais que uma fazenda inteira, e levar quase duas décadas para ser copiada por um copista habilidoso, enquanto, na prensa de tipos móveis de Gutenberg, demorava três anos para percorrer a Bíblia inteira, mas a mesma era capaz de produzir centenas de Bíblias nesse período (curiosamente, Gutenberg era católico, e a Bíblia impressa por ele era a Sacra Vulgata, uma Bíblia católica). É de uma grande desonestidade intelectual comparar o período entre 800 e 1200 com o período pós-1455, e uma desonestidade ainda maior colocar isso como culpa somente da Igreja Católica.
Na verdade, a própria Wikipedia desmente a ideia de que a tradução de Lutero foi a primeira para o alemão, tendo entre as edições anteriores a Bíblia de Mentelin e a Bíblia de Koberger, por exemplo, além de outras 15 traduções para o alemão, sendo 12 dessas traduções mais simples em baixo alemão, voltadas ao povo. Além disso, a Bíblia de Lutero é duramente criticada por vários motivos, como ter colocado, inicialmente, a epístola de Tiago junto aos “apócrifos” da Bíblia, e ter adicionado a palavra “somente” em Romanos 3:28, que ele mesmo admitiu ter alterado e justificou dizendo que, mesmo fugindo da tradição e da Bíblia, acreditava ser a intenção de Paulo. Isso não significa que é uma adulteração (falsificação), e sim uma tradução de sentido, onde se preserva o sentido mais provável ao invés de se optar pela opção mais literal.
Sobre João Ferreira de Almeida, sim, aí tem um ponto válido, afinal o pastor Almeida realmente foi o primeiro a traduzir a Bíblia quase completamente para o português (faltou uma pequena parte do Antigo Testamento, mas ainda é um feito e tanto), isso até 1680, e a primeira versão em algum momento em 1753, enquanto isso a tradução do Padre Figueiredo só veio a ser publicada completamente em 1790 e em 23 volumes. Ainda assim, a tradução Almeida foi considerada inferior à tradução do Padre Figueiredo, tanto por ser uma tradução que já nasceu datada quanto por opções de tradução destoantes de bíblias convencionais, como em Tiago 5:16, onde é usada a palavra “culpas” (termo genérico indicando algo que você fez de ruim sabendo que era ruim) ao invés de “pecados” (ofensa contra as leis de Deus e contra a própria vontade divina) como em outras traduções (mesmo as não católicas). Para validar essa incongruência, geralmente é utilizado o argumento de que nos originais a palavra usada é “culpa”, e não “pecado” (argumento usado por este site horrível desenvolvido por um apologista protestante aparentemente sem o mínimo de conhecimento sobre o tema), porém a palavra usada não é nem um nem outro, e sim “παραπτωματα”, transgressões, ou contravenções, palavra que se encaixa muito mais no sentido de “pecado” (transgressão contra a lei de Deus e a vontade divina) do que de “culpa” (mal que você faz de forma consciente).
Além disso, as bíblias, independente de qual vertente (com exceção dos testemunhas de Jeová), possuem influência católica, principalmente da patrística, e o motivo é simples: dar clareza ao texto. Se pegarmos João 1:1, por exemplo, os testemunhas de Jeová terão uma tradução diferente e te darão argumentos que defendem a tradução com maestria (se quiser se aprofundar nas críticas dessa tradução, clique aqui). Porém, ao vermos a patrística (os pais apostólicos, que fundamentam toda a Igreja e que muitos deles estudaram com os apóstolos em pessoa, e sabiam em primeira mão o que eles queriam dizer aquilo), não se comprova como verdade. Enquanto Agostinho escreveu um livro inteiro sobre o trinitarismo e Anastásio escreveu um livro inteiro criticando o arianismo (doutrina semelhante ao antitrinitarismo seguido pela Torre de Vigia), Justino Mártir escreveu o seguinte no diálogo com Trifão (34:2-6) ainda no início do século II:
Com efeito, Cristo, como eu vos demonstro por todas as Escrituras, é chamado rei e sacerdote, Deus, Senhor, anjo, homem, supremo general, pedra, menino recém-nascido; dele se anunciou que, primeiro nascido passível, devia depois subir ao céu e daí há de vir novamente com glória e possuir um reino eterno. E para que entendais o que estou dizendo, repetir-vos-ei as palavras do salmo (Salmo 72 (71)), que diz o seguinte:
“Ó Deus! Concede ao rei o teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei, para que ele julgue o Teu povo com justiça e os necessitados com direito. Que os montes germinem paz para o povo e as colinas justiça. Ele fará justiça para os necessitados do povo, salvará os filhos dos pobres e humilhará o caluniador. Ele permanecerá com o sol e antes da lua, por gerações e gerações. Descerá como chuva sobre a lã e como gota que goteja sobre a terra. Em seus dias florescerá a justiça e muita paz, até que a lua seja tirada de seu lugar. Dominará de mar a mar, dos rios aos confins da terra. Diante dele se prosternarão os etíopes e seus inimigos comerão o pó. Os reis de Társis e das ilhas lhe apresentarão oferendas; os reis dos árabes e de Sabá lhe trarão presentes, todos os reis da terra o adorarão e todas as nações o servirão. Porque ele libertará o necessitado de seu opressor e o pobre que não tem quem o ajude. Perdoará o pobre e o necessitado, e salvará as vidas dos pobres, redimindo-os da usura e da iniquidade. E seu nome será precioso diante deles. Ele viverá e lhe será entregue ouro da Arábia. Continuamente elevarão preces para ele e o bendirão todo o dia. Haverá firmeza na terra; ele será levantado sobre os cumes dos montes. Seu fruto estará sobre o Líbano e da cidade florescerão como pó da terra. Seu nome será bendito pelos séculos. Seu nome permanece antes do sol. Nele serão abençoadas todas as tribos da terra e todas as nações o proclamarão bem-aventurado. Bendito seja o Senhor Deus Israel, o único que faz maravilhas, e bendito o seu nome glorioso pelos séculos e pelos séculos dos séculos. E toda a terra ficará repleta de sua glória. Assim seja. Assim seja”.
E no final do salmo, que acabo de citar, está escrito: “Fim dos hinos de Davi, filho de Jessé”
Enquanto isso, Irineu de Lyon, aluno de Policarpo de Esmirna, que, por sua vez, foi ensinado pelo próprio João Evangelista (escritor do texto destacado), disserta sobre o tema (Contra as Heresias, livro IV, 2:3, 6):
Que os escritos de Moisés são as palavras do Cristo ele próprio o diz, assim como João refere no seu Evangelho (João 5:46-47): “Se tivésseis crido em Moisés teríeis também crido em mim, porque é a meu respeito que ele escreveu; mas se não credes nos seus escritos não crereis nas minhas palavras”, indicando clarissimamente que os escritos de Moisés são suas próprias palavras. E se o são as de Moisés, sem dúvida são também suas as palavras dos outros profetas, como demonstramos. Ainda o próprio Senhor declarou que Abraão disse ao rico acerca dos homens que ainda viviam: “Se não escutam Moisés e os profetas não acreditariam tampouco se fosse a eles alguém ressuscitado dos mortos”
Nem poderão dizer que estas expressões são metafóricas, porque, pelas próprias palavras se devem convencer que devem ser entendidas em sentido próprio. Com efeito, era a própria Verdade que falava e reivindicava verdadeiramente a sua casa, quando afastava dela os trocadores que compravam e vendiam moedas, dizendo-lhes: Está escrito: “A minha casa será chamada casa de oração, mas vós fizestes dela covil de ladrões”. Qual motivo poderia ter para agir e falar daquele modo, reivindicando a casa como sua, se anunciasse outro Deus? Mas com isso ele os queria denunciar como transgressores da Lei do seu Pai, pois não incriminava a casa, nem condenava a Lei que ele veio completar, e sim repreendia os que não usavam bem da casa e violavam a Lei. Por isso, os escribas e os fariseus, que desde os tempos da Lei começaram a menosprezar Deus, também não receberam o seu Verbo, isto é, não creram no Cristo.
E esse é apenas um dos trechos onde a patrística (pais apostólicos, pertencentes à Igreja Católica antiga, e que reconheciam a primazia romana) influenciou a tradução atual da Bíblia, baseada na Sacra Vulgata Latina (tradução da Bíblia para o latim encomendada pelo Papa Dâmaso I da Igreja Católica Apostólica Romana e manufaturada por São Jerônimo e companheiros diversos, e com tradução validada pela patrística). Por isso, atacar a patrística (como este cavalheiro, que eu me recuso a comentar sobre para não ofendê-lo da forma por ele merecida, e este apologista, que eu realmente questiono a sobriedade e a lucidez no momento em que escreveu o texto citado) acaba em, por consequência, atacar as escrituras como as temos hoje (a menos que você seja um defensor de que todo o cristão saiba falar grego e hebraico fluente ou que você considere a Tradução do Novo Mundo uma tradução válida mesmo negando com unhas e dentes todo e qualquer documento do período).
Portanto, não, não é, necessariamente, por causa de Lutero e de João Ferreira de Almeida que você tem a Bíblia em casa, mas por um conjunto de fatores, que envolvem a patrística, a Igreja Católica, a invenção da prensa de tipos móveis e o barateamento dos livros ocorrido entre 1455 e 1700. A Igreja não proíbe e nem proibiu a leitura da Bíblia (no máximo a restringiu temporariamente em determinados momentos), além disso a Bíblia emanou da Igreja, e não o contrário.
Novamente, isso não é uma heresia, propriamente dita, mas é graças a essa falácia que muitas heresias possuem embasamento, como os próprios testemunhas de Jeová. Posteriormente, vou falar mais sobre a criação da Bíblia como a conhecemos.
A Paz de Cristo.
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